Escavação na cidade mais indígena do Brasil aponta ocupação densa de mais de 2 mil anos

São Gabriel da Cachoeira (AM) é considerada a cidade mais indígena do Brasil, reunindo 23 povos pertencentes a cinco famílias linguísticas — Tukano Oriental, Aruak, Yanomami, Japurá-Uaupés e Tupi. Lá, em dois pequenos pontos de escavação, arqueólogos encontraram elementos que comprovam a existência de povoamento denso, contínuo e antigo, de pelo menos dois mil anos.

Os achados contradizem o discurso comum que atribui à região características como esvaziamento populacional, isolamento e desconexão com o restante do território amazônico. A área é uma das mais preservadas da Amazônia e vem sendo estudada desde 2019 pelo Parinã (Programa Arqueológico Intercultural do Noroeste Amazônico), que acabou de elaborar os primeiros relatórios sobre os fragmentos arqueológicos encontrados.

O projeto envolve a participação de indígenas que estudam arqueologia na UEA (Universidade do Estado do Amazonas), curso recém-criado na cidade, além de profissionais de arqueologia do Musa (Museu da Amazônia), do Museu Paraense Emílio Goeldi, da UFPA (Universidade Federal do Pará), da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), da UCL (University College London) e colaboradores externos.

Fragmento encontrado nas escavações do Parinã. Foto: Divulgação

Duas porções de terra de um metro quadrado e 80 centímetros de profundidade, localizadas no quintal do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e na praça da diocese da cidade, revelaram 12.127 objetos, principalmente fragmentos de cerâmica (9.114) e material lítico, ou seja, pedras com algum tipo de lapidação (2.881).

Entre os fragmentos escavados foram encontradas peças associadas à Tradição Polícroma da Amazônia, em que eram aplicadas cores às cerâmicas. Segundo os pesquisadores, estes fragmentos remetem a um período de 800 d.C. até a chegada e ocupação dos portugueses na Amazônia, nos séculos XVI e XVII.

Os objetos encontrados foram levados ao Musa, em Manaus, e passarão por avaliação de características das fases de ocupação da Amazônia e datações radiocarbônicas para identificação do período em que aquela cerâmica ou carvão foram queimados.

Fragmento encontrado nas escavações do Parinã. Foto: Divulgação

“A região era considerada como sem densidade populacional, mas se comporta como outros locais da Amazônia. Também era considerada como uma área difícil de ser ocupada, mas tem ampla e densa ocupação há muito tempo”, diz o arqueólogo Filippo Stampanoni, diretor-adjunto científico do Musa e coordenador do projeto, à Folha de S. Paulo.

“Encontramos muito material lítico, mais comum em comunidades mais antigas”, continua Stampanoni, que acredita que a datação dos fragmentos encontrados na região do alto rio Negro, onde se localiza São Gabriel da Cachoeira, pode ultrapasser 10 mil anos. 

A arqueóloga Helena Pinto Lima, do Museu Goeldi, diz que “a Amazônia é colocada como não habitada ou pouco habitada, sem reconhecimento da presença dos indígenas em áreas como o noroeste amazônico”. Os achados recentes dos pesquisadores contrariam essa crença: “a região tem ocupação antiga, de diferentes povos, com datação de dois mil anos atrás. É uma terra que carrega uma história antiga”, conclui Lima.

Nos anos 90, um estudo pioneiro liderado pelo pesquisador Eduardo Neves confirmou histórias orais da etnia tariana sobre a existência de uma aldeia fortificada no século XII, muito antes da invasão portuguesa no Brasil.

Os fragmentos e peças remontadas retornarão ao alto rio Negro para uma exposição no começo de fevereiro na maloca da Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro) em São Gabriel da Cachoeira.

Fonte: Folha de S. Paulo.

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